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Colapso leva profissionais da saúde à exaustão: 'A gente está na luta, e as pessoas não estão nem aí'

 

Roberto Muniz Junior já chegou a olhar 200 fichas em 12 horas para escolher apena um paciente para ser internado Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
SÃO PAULO - Em fevereiro do ano passado, o infectologista Roberto Muniz Junior, de 41 anos, mudou-se com sua família de São Paulo para São Carlos, cidade com cerca de 254 mil habitantes a 239 quilômetros da capital, para ter uma vida mais tranquila. Com uma proposta de emprego na Santa Casa, acreditava que teria mais tempo para se dedicar ao filho, na época com seis meses. Ele não imaginava, porém, o que aconteceria nos meses seguintes.   As informações são do  Extra.

Na última semana, o hospital entrou em colapso. Sem anestésicos necessários para a intubação de pacientes, o gerente médico pediu a transferência de 60 pacientes. Diante da crise, 27 profissionais, entre técnicos de enfermagem e enfermeiros, se demitiram. Passado um ano do começo da pandemia, profissionais de saúde que combatem a Covid-19 estão no limite.

Somado à falta de remédios, oxigênio e leitos, o esgotamento dos profissionais de saúde é mais uma triste faceta do cenário de colapso hospitalar que o país vive. Nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI), cada médico intensivista costumava ficar responsável por 10 pacientes, em média, antes da pandemia. Agora, cada profissional cuida de 25 pessoas, todas com a saúde debilitada, segundo dados da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (Amib).

A falta de profissionais qualificados e em número adequado é um dos motivos apontados por especialistas para justificar a alta taxa de mortalidade nas UTIs do país. Entre os pacientes intubados, 83,5% morrem, segundo dados do Ministério da Saúde compilados por pesquisadores da Universidade de São Paulo e da Fundação Oswaldo Cruz.

— Não tem como contratar mais médicos. Isso deixa os profissionais ainda mais sobrecarregados. Quando a gente fala em colapso, estamos falando da falta de recursos humanos, de equipamentos, de espaço, de insumo. É um colapso de tudo — diz Ederlon Rezende, intensivista do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo e membro do Conselho Consultivo da Amib.

Como não há profissionais em número suficiente, hospitais têm encontrado dificuldade para repor quem adoece, se afasta ou pede demissão, o que sobrecarrega quem está empregado. A carência de médicos e enfermeiros emperra também a abertura de novos leitos de UTI. No Rio, há 567 vagas de médicos abertas desde o último chamamento público para hospitais federais e faltam cerca de 1.220 enfermeiros, técnicos e auxiliares. O governo de São Paulo tenta compensar o déficit chamando voluntários, mesmo que de outras áreas da medicina. No início do mês, o Hospital Júlia Kubitschek, de Belo Horizonte, precisou bloquear dez leitos por falta de médicos.

Em seus anos de medicina, Muniz nunca teve de tomar decisões tão difíceis quanto nos últimos meses. Como responsável pela regulação de vagas, ele faz a triagem de pacientes que precisam de leitos de UTI.

‘Pensando várias vezes’

— Você tem uma vaga e vai negar 199. Por trás daquelas fichas, tem pessoas com filhos, com pai, com mãe. E você sabe que muitas dessas pessoas vão efetivamente falecer em algumas horas — desabafa Muniz. — A gente se pega pensando nisso várias vezes ao dia, revendo as decisões. Vou ter de carregá-las para o resto da vida e tentar fazer as pazes com elas, pensando que fiz o melhor que pude — disse.

Há um ano, a psicóloga Verena Barreto Lima, de 32 anos, auxilia a equipe médica do Hospital São Paulo a dar notícias de piora no quadro de pacientes e de óbitos.

— Nunca tem nada positivo, só é morte. Todos os dias dou notícia de óbito e gravidade. Alguns familiares ficam com raiva, se desorganizam. Outros só choram. Uns já esperavam aquilo e só nos agradecem — disse.

Como coordenadora da psicologia da UTI do hospital, ela é responsável também por confortar os pacientes que não estão sedados, os familiares e a própria equipe de saúde. Numa tentativa de humanizar o atendimento, fotografias dos doentes e seus parentes são colocadas nas paredes dos leitos. Para tentar dar leveza ao ambiente de trabalho, Verena coloca música e costuma conversar com os colegas sobre os filhos e animais de estimação. Tudo para tirar o foco do vírus. Mesmo com suporte psicológico, a equipe de saúde — ela própria, inclusive — desestrutura-se diante de casos mais comoventes.

— A equipe está muito desgastada. Tento passar para eles que oferecemos tudo que foi possível aos pacientes — disse Verena.

Enxugar gelo

Durante 12 horas por dia, o técnico de enfermagem Willian Pinheiros, de 39 anos, fica em contato direto com a iminência da morte. Pela manhã, trabalha na UTI do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo. À tarde, cumpre expediente na terapia intensiva do HCor. Ele dedica todo o tempo aos cuidados de pacientes graves: dá medicamentos, banho e muda os corpos de posição, de modo que não tenham lesões na pele.

— Infelizmente, não consigo dizer quantas mortes presenciei neste ano. Sempre cuidei de doentes na fase terminal, e me via como alguém que vai auxiliar neste momento, ou para a cura ou para o desfecho final. Mas agora, com tantos óbitos, vejo que só enxugo gelo.

Mesmo com duas décadas de experiência em UTIs, Pinheiros ainda se impressiona com as perdas de tantos pacientes — e se emociona com os dramas das famílias dilaceradas pela pandemia. Ele conta que recentemente cuidou de uma senhora que havia perdido oito familiares.

Aglomerações na rua

Sempre que circula por Balneário Camboriú, no litoral de Santa Catarina, a enfermeira Janaina Cervi, de 40 anos, sente uma chateação profunda. Ao olhar pela janela da ambulância do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), não consegue conceber que, do lado de fora, moradores e turistas ainda teimem em se aglomerar, não usar máscaras e sair à rua sem necessidade.

— Nós, da saúde, estamos no limite e não temos a opção de parar. A gente está aqui na luta, e as pessoas não estão nem aí: continuam na praia, continuam na rua. É inaceitável — disse.

Janaina trabalha 36 horas semanais, em turnos que duram 12 horas. Durante o expediente, chega a ficar até cinco horas sem ir ao banheiro ou tomar um gole de água, por causa dos equipamentos de proteção.

— Sempre me pergunto por que não largo isso. Minha profissão dá sentido à minha vida. Mas sinto que, enquanto estou salvando vidas, estou perdendo a minha — afirmou.

A solução para os problemas que levam os profissionais de saúde ao esgotamento parece tão distante quanto o fim da pandemia. Na opinião de Rezende, da Amib, não há outra saída senão insistir no isolamento :

—É diminuir o número de casos para diminuir a sobrecarga do sistema de saúde. Não tem alternativa.

(Colaborou Ana Letícia Leão)

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